Uma amiga comentou esses dias no Facebook que “Viu um episódio feliz de Black Mirror”. Tratava-se do episódio entitulado San Junipero. O final é bonito e emocionante mas, fazendo uma breve análise, será mesmo?
Eu fiquei curioso com o comentário dela, já que, até o momento, todos os episódios que havia visto possuem finais, no mínimo, desconcertantes. Muitos chegam a ser perturbadores, a ponto de nos fazer pensar o quanto nossa sociedade é egoista e opressora.
Aliás, este é o verdadeiro brilho da série. Black Mirror não se trata de tecnologia, mas sim de pessoas. A tecnologia mostrada na série é apenas um atalho para mostrar o comportamento humano mais claramente.
Alerta de spoilers
Este post contém spoilers do episódio. Se ainda não assistiu, recomendo que pare de ler e o assista primeiro.
Breve resumo
Duas garotas, Yorkie e Kelly, se conhecem num bar acabam se apaixonando, embora uma delas esteja tentando evitar apego a qualquer custo. Mais tarde percebemos que o bar é parte de uma realidade virtual que simula diferentes décadas e tem por objetivo o entretenimento dos usuários.
Esta realidade virtual é um sistema chamado San Junipero e cada usuário normalmente pode acessá-lo por um máximo de cinco horas por semana.
Num diálogo entre as duas, Yorkie questiona quantas pessoas ali são usuários em tempo integral, ao que Kelly responde que imagina cerca de 80% a 85%. Ela ainda esclarece que os usuários em tempo integral estão na realidade mortos. – Estes usuários são os que decidem permanecer em San Junipero após suas mortes.
Uma vez estabelecido o cenário, o argumento principal se mostra. Ambas as personagens principais estão em seus últimos dias de vida. Yorkie ficou tetraplégica devido a um acidente e é mantida viva por aparelhos, a eutanásia é sua única alternativa de ter uma vida feliz em San Junipero. Kelly, por outro lado, deve morrer em breve, mas não tem intenções de permanecer em San Junipero por motivos pessoais e morais.
No final, Kelly ajuda Yorkie em sua eutanásia e, após uma cena dramática com conflitos de pontos de vista entre ambas, acaba cedendo e muda de ideia, também permanecendo em San Junipero.
O final feliz mostra ambas vivendo alegremente em San Junipero, livres de preocupações.
Ou nem tanto?
O paraíso está na nuvem
O conceito de computação em nuvem (em inglês, cloud computing) refere-se à utilização da memória e da capacidade de armazenamento e cálculo de computadores e servidores compartilhados e interligados por meio da Internet. […]
– Wikipedia
A ideia parece uma solução atraente, certo?
Se não existe paraíso, criamos nossos próprio, levando a consciência de nossos mortos para um mundo virtual onde eles terão liberdade para viver como quiserem.
O tema sequer é novo, já tendo sido explorado em outras histórias (Doctor Who, por exemplo).
Mas existe uma série de falhas no conceito em si. Vamos a elas.
O paraíso é chato
A ideia geral de paraíso é de um lugar onde todas as necessidades são satisfeitas sem esforço. O problema é que satisfação e recompensa deve vir em resposta a esforço e desafio, do contrário nossa própria existência perde sentido.
San Junipero não fornece isso. Uma vez lá, as pessoas, especialmente os em tempo integral, vivem para sempre, sem riscos de danos físicos. Ao que parece nem precisam comer ou dormir, e isso deve levar a um estado de tédio e insatisfação geral a longo prazo.
O episódio mostra um pouco disso quando Yorkie vai a outro bar, um lugar de extremismos. As pessoas lá estão tentando preencher espaços vazios, com brigas, drogas, sexo, etc. Tentando encontrar formas de testar a si mesmas, tentando suprir a falta de esforço.
Considerando isso é difícil imaginar que Yorkie e Kelly consigam ser felizes para sempre.
O dilema da consciência humana
Seriam os usuários em tempo integral ainda humanos?
Alan Turing, conhecido com o pai da computação moderna, desenvolveu em 1950 um teste de consciência para saber se uma máquina é capaz de se comportar como um ser humano. – Versões alternativas deste teste são utilizadas até hoje em websites para saber se o usuário é ou não um bot (você já deve ter ouvido falar em CAPTCHA).
Vários filmes e séries de ficção científica já apresentaram máquinas capazes de passar no Teste de Turing. Alguns exemplos dignos de nota são TRON (1982), o anime Ghost in the Shell (1995) (que terá uma versão Live Action este ano, interpretada por Scarlett Johansson), The Matrix (1999), The Thirteenth Floor (1999) e mais recentemente Ex Machina (2015) e Westworld 2016.
A questão que quero levantar aqui é que os usuários em tempo integral de San Junipero podem não passar de construtos de consciência baseados nos seus usuários originais. Em termos vulgares, apenas programas.
A responsta do Black Mirror
Após a morte de Yorkie, seu ponto de vista sobre San Junipero sofre uma mudança, apresentada de forma bastante sutil. Ela se sente extasiada com as sensações novas, o mar, o vento, etc. Mais do que isso, ela diz que…
Isto é real.
Mas porque agora San Junipero é real se antes não era?
Esta é a dica de que Yorkie não é mais ela mesma, já que suas ideias mudaram. Ela provavelmente foi até reprogramada para aceitar San Junipero como realidade.
Kelly parece perceber isso, o que pode ter influenciado sua decisão final de também ir para San Junipero, já que numa das cenas nos créditos mostra seu enterro junto ao marido, o que prova que ela não se afastou totalmente de sua decisão original.
Yorkie e Kelly não passam de produtos
A última cena mostra uma série de discos num mainframe sendo organizados por braços mecânicos e dá ênfase em dois deles – Yorkie e Kelly, podemos presumir.
Essa cena para mim é o lembrete de que você está assistindo Black Mirror e que as coisas não vão acabar bem.
Pensando num ponto de vista prático (e bastante capitalista), não faz sentido manter um sistema online apenas para a pós-vida. Yorkie e Kelly (e todos os demais em tempo integral) não estão mais em San Junipero para se divertirem e serem felizes, eles estão lá para interagirem com os vivos (que provavelmente estão pagando por isso).
Elas deixaram de ser clientes para se tornarem produtos.
Correlações com outros episódios
Para reforçar, existe uma teoria de que todos os episódios de Black Mirror se passam num mesmo cenário e vários episódios anteriores já mostram tecnologias similares.
- S02E01: Be right back – mostra um sistema capaz de imitar o comportamento de um indivídio.
- S02E04: White Cristmas – já mostra construtos de personalidade criados a partir de consciências humanas.
Assim podemos considerar que a tecnologia é suficiente para imitar copiar perfeitamente uma pessoa.
Final feliz ou não… Só depende de seu ponto de vista
San Junipero me lembrou muito a série Caprica (2009), um spin-off de Battlestart Galactica (2004).
Caprica traz uma mensagem de que…
Uma cópia perfeita é indistinguível da original
Assim, mesmo que Yorkie e Kelly sejam apenas cópias em San Junipero, talvez isso não faça nenhuma diferença, talvez seja exatamente o mesmo que vida após a morte e se elas são felizes isso é suficiente.